FOLHETIM | Uma rubrica de Licínia Quitério
Casa de Hóspedes (20º. Episódio)
Entristeceu a Adelaide na ausência do Gil, os dias pareceram-lhe meses, anos, lá no fundo temendo que, de regresso, ele não fosse já o mesmo, que menos entusiasmado lhe pareceu nos últimos encontros na Pensão Águia Branca, o ninho que ele tinha descoberto, modesto mas asseadinho, num alto da cidade, longe das vistas do mundo, intramuros, só conhecido de frequentadores furtivos, de clandestinos do amor. Na recepção, ele declarava o nome de José Silva e o dela, Maria Silva, assim exarado no livro de registos, para a polícia fechar os olhos, a troco da cobrança mensal. Ainda na rua, Adelaide tinha passado para a mão do Gil o dinheiro do quarto, que a mesada, coitado, mal chegava para os livros e ela estava mais abonada, uma vez descoberto o saco de plástico recheadinho de notas, no fundo falso do caixote das batatas, coisas da velha, avarenta, desconfiada, e agora desatinada o suficiente para não mais se lembrar do esconderijo. Da recepção ao quarto, subindo os dois lances de escada de madeira, com passadeira a abafar os passos, Adelaide pedia aos seus santinhos que não se cruzassem com outra pessoa o que, por sorte, nunca aconteceu. Breves horas escaldantes, Adelaide com acessos de culpa, de vergonha, quando ouvia gemidos no quarto contíguo, separado do deles por porta trancada. Pensava, enquanto ele a despia, ao que eu cheguei, numa pensão de putas, raio de vida, aqui não volto e ele o que é que foi, andas esquisita, vamos mas é aproveitar o tempo, que eu hoje não me posso demorar, tenho duas frequências esta semana.
Quando o calor apertava, a casa aquecia, a escada parecia um forno sob o Sol picante na claraboia. Adelaide ficava para ali, meia despida, arrastando suor e moleza por cadeiras e cama, sempre tem o jantar de quatro pessoas a seu cargo, vida de mulher, talvez um dia as coisas mudem e os homens ajudem nas lidas da casa, quem sabe, pelo menos é o que diz o Gil que espera não sabe ela bem o quê, mas alguma mudança nas vidas, fala de direitos das mulheres, explica-lhe que há-de chegar a liberdade, e quando fala destas coisas fica ainda mais bonito, os olhos verdes ainda mais verdes.
(continua)
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